Os dragões, ou de como Murilo Rubião se intrometeu na minha vida

Figura humana

Credo, Domine, sed credam firmius; spero, sed sperem securius.

José Eduardo Lima Pereira

Ato primeiro: Belo Horizonte.

Em junho de 1967 eu era um moço desesperadamente apaixonado pela moça mais bonita de minha cidade. Na verdade, era a moça mais bonita do mundo. Para ser mais verdadeiro ainda, e para escancarar o tamanho do meu desespero de amor daqueles dias, afirmo que depois que a conhecinunca mais fui capaz de achar bonita nenhuma outra moça.

Bonita. E inteligente, interessante, engraçada, cheirosa, brava que nem o quê, teimosa, opiniática, enfim, a mulher perfeita, sob a forma de uma menina de dezessete anos e olhos que eu nunca soube bem se eram verdes ou azuis.

Um amor destinado a coisa nenhuma, a moça tinha namorado, namorado firme, desde os seus quatorze anos.

Amor desesperançado é difícil de viver, mas fácil de reconhecer: não se tem vida. O mundo fica cinza, a boca fica ruim, os amigos ficam chatos. A escola, um pavilhão de absurdos.

A única coisa que então me libertava do meu mundo de sofrimento era a leitura. Sempre li demais, desde menino lia muito e lia bem, minha casa era uma casa de livros e de leitores. Pois nesse tempo eu consumileitura como se fosse crack. Quem fuma crack tem de fumar crack, senão a vida é insuportável. É o que dizem. Meu tempo se resumia a fumar papel com os olhos.

Um dia comecei a leitura de um livro de contos e dei de cara com o seguinte:

Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar.

Não cito mais: pare de ler esta minha história e vá ler o conto inteiro. O proveito será maior.

Li aquele conto umas dez vezes, espantadíssimo, eu era um dragão. Eu era um daqueles gentis dragões sem lugar no mundo, seres plenos de um amor indesejado das gentes. Se eu sofria ao me identificar com os dragões, esse sofrimento fazia-me sofrer menos. E saber-me um dragão sacudiu minha droga de vida, deu-me vergonha de não enxergar a força deminha fragilidade, a fragilidade de quem ama perdidamente, que éa força de quem ama perdidamente.

Deus criou os dragões no oitavo dia, depois de descansar. Pôs nos dragões toda a bondade, todo o amor que no Homem quisera ter posto, e não pudera, embora pudesse tudo. Estabeleceu Deus para Si mesmo uma impossibilidade, Deus escravizou-se ao princípio do Livre Arbítrio de que dotara o Homem.

No oitavo dia, depois de descansar, deleitou-se Deus na criação dos dragões. E Deus viu que isso era muito, muito bom. E fez-se noite e fez-se dia, e Deus retirou-se de sua criação. E nunca mais voltou.

Agora eu era um dragão, insubmisso às limitações do humano, sem medo de meu amor. E fui.

Eu me encontrava com a moça linda todos os dias, de segunda a sexta-feira. Éramos uns amigos que todas as noites lecionavam em uma escola de alfabetização de adultos, funcionando em salas cedidas pelos Irmãos Maristas.

Eu a acompanhava sempre até sua casa, a quatro quarteirões dali. Queria acreditar que a cada dia ela caminhasse mais devagar, que às vezes a surpreendia a olhar para mim, que ela ouvia o que eu lhe dizia com mais atenção, que se demorava um pouquinho mais antes de entrar em casa.

Naquela noite eu lhe disse que ia viajar, passar o mês de julho fora, que ia pedir a um amigo que lhe levasse um livro de contos no dia seguinte, que lesse o conto “Os dragões”, que conversaríamos sobre o livro quando eu voltasse. Dei-lhe um beijorápido e desajeitado, que me assustou mais que a ela, virei as costas e sumi.

Fui direto à casa do Claudinho, amigo bom que já sabia de minha história infeliz, disse a ele que levasse o livro, que puxasse assunto, que visse se eu tinha remédio ou se iria viver doente pelo resto da vida.

Na semana seguinte recebi um telegrama do Claúdio, voltei correndo de onde estava, sete anos depois estava casado com a moça mais bonita do mundo. E estarei sempre, enquanto ela me quiser.


Ato segundo: Lavras do Funil.

Em dois de julho de 1974 saí de Belo Horizonte rumo a Campos do Jordão, em viagem de lua de melcom a moça bonita. Era um estirão de estrada, meu pai me disse que conhecia um bom hotel no meio do caminho, um casarão colonial bem restaurado na cidade de Lavras, o Vitória, de propriedade do Enio Wilden. E assim fomos.

No fim da tarde, Lavras nos acolhia com faixas de pano penduradas entre os postes, que proclamavam “BEM VINDOS, PARTICIPANTES DO CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILATELIA E NUMISMÁTICA”.

Claro que eu não tinha reservas no hotel. Claro que uma novidade dessa natureza já entupira de gente esquisita todos os quatro hotéis que Lavras do Funil ostentava em 1974, além das pensões e quartos por alugar em casas de família, lá e nas redondezas.

Vi o hotel, era mesmo muito bonito o casarão branco e azul, sobrado imponente em uma praça arborizada, parei o carro e desci. Chego à recepção, fico conhecendo o Wilden que, simpático, lamenta não poder acolher-nos, nem indicar qualquer outro pouso, mas ouço uma voz por trás de mim que diz – Há duas reservas em nome de Murilo Rubião?

Agarrei-me àquele ultimo recurso improvável que Deus reserva aos náufragos, aos paraquedistas e aos casais em lua de mel: – O Senhor é Murilo Rubião?

Eu sabia que era: o bigode que teimava em quase ocultar o meio-sorriso um pouco torto para o lado direito do rosto -ou seria o esquerdo?-os óculos pesados que às vezes escorregavampor sobre o nariz, a calvície que era sua marca desde os tempos de estudante, a própria cara de um verdadeiro Murilo Rubião. Ele não poderia negar.

Não negou e recebeu de volta a frase que nenhum personagem inconsequente de sua ficção poderia pronunciar: – Eu sou José Eduardo, esta é a Beth, estamos aqui por sua causa, casamo-nos ontem por causa de seu livro “Os Dragões” e não temos onde passar a noite.

Contei-lhe a história toda, que o leitor deste relato já conhece, desde o amor desesperado até as faixas de rua do congresso de numismática e filatelia. A essa altura já nos sentáramos na recepção do hotel, ele me ouvia com ar muito atento, em ansioso silêncio, até que eu terminei por dizer:- E juro que não inventei esta história.

-Ninguém inventaria uma história dessas, moço. Nem eu a inventaria.

Foiaté o Wilden: – Meu caro, tenho duas reservas. Cedo uma delas para o casal, arranjo-me de alguma maneira, mas o hotel tem de colaborar: seu melhor quarto vai para eles, reservado ou não!

Ato terceiro: Belo Horizonte,um quarto de século depois do beijo roubado.

1991, apartamento de Murilo Rubião na Avenida Augusto de Lima. Ele já não conversa, fez traqueostomia, os olhos sorriem e continuam brilhantes e atentos. Muito elegante em seu robe azul.

Não posso deixar de vê-lo como um doce dragão. Também ele está ali contido,contra sua vontade, manietadona sua capacidade de fazer do irreal um real mais real que o real. Fora do congresso de numismatas, longe das Lavras do Funil,eu o vejo belo e triste como um dragão.

Foi a última vez que o vi. Deixei-o sem saber se sua esperança se realizou: definira-se uma vez como, entre outras coisas, “sem crença religiosa”, acrescentando: – “Alimento, contudo, sólida esperança de me converter ao catolicismo antes que a morte chegue.”.

Doleo, sed doleam vehementius.