A tarde fantástica em que José J. Veiga conheceu Murilo Rubião, em BH – Afonso Borges (2019)

Figura humana

Afonso Borges

25 DE NOVEMBRO DE 2019

Já tinha realizado um bom evento com José J. Veiga, no lançamento de “Torvelinho Dia e Noite”. Antes, seu “Cavalinhos de Platiplanto” já fazia parte do meu repertório. Corria o ano de 1989 e, no meio do jantar, depois do lançamento, com aquela elegância miúda, o bom goiano manda essa:

– Tinha muita vontade de conhecer o Murilo Rubião.

– Mas como? Vocês dois, os chamados “expoentes da literatura fantástica brasileira” não se conheciam, perguntei, espantado, em tom de brincadeira.

Não, não se conheciam. Os dois na casa dos 74 e nunca haviam se encontrado. Fiquei de marcar o café, ou um chope no Pelicano, mas esqueci. Semanas depois, me liga o Veiga, tinha um compromisso em Belo Horizonte. Me lembrou do combinado. Liguei para o Murilo e imaginei logo uma visita ao Suplemento Literário de Minas Gerais, do qual ele era fundador. Ao ouvir meu desejo, pigarreou, gaguejou e desconversou. Ficou de ligar depois. Estranhei, afinal, Murilo conheceu gerações de escritores. Eram naturais estes encontros em sua vida. Mas este parecia especial.

Alguns dias depois, ele me liga, perguntando pela data. Eu lhe disse e, para minha supresa, ele foi objetivo: às 15 horas, na minha casa. Vamos tomar um lanche, completou. Conheci Murilo Rubião na juventude, por mero acaso geográfico: sempre morei no Centro da cidade, perto da Imprensa Oficial, onde ele trabalhava. Publiquei meus primeiros poemas no SLMG, e a literatura pediu passagem para se instalar na minha vida. Encontrava com Murilo quase todos os dias, no sobe-e-desce da Avenida Augusto de Lima. Cansei de ouvir os relatos de seus contos, que ele invariavelmente mudava. Um deles, o dos dragões, me contou pelo menos 10 versões diferentes do final. E vejam: o conto já havia sido publicado anos atrás. Ele trabalhava uma outra versão que imaginava publicar, sei lá quando, nem como.

O convite para ir a sua casa me inquietou. Eu nunca tido ido lá. Mas, vamos, assim será. Chegou a tarde do encontro, passei no finado Hotel Del Rey, a apenas um quarteirão do Edifício Maletta, peguei um nervoso José J. Veiga e caminhamos para o apartamento do Murilo. Perguntei pela nervosia e ele não se fez de rogado:

– Há muitos anos espero este momento, Afonso.

Um Murilo empertigado em seu terno nos esperava. A cerimônia do mundo ali se instalou. Sentaram-se de frente um para um outro. Na mesa de centro, uma garrafa de café, três xícaras, biscoitos cream-craker, manteiga e a metade de um bolo. Eu fiquei em uma outra cadeira, ao lado. Pegaram as xícaras com cuidado, colocaram açúcar, mexeram, beliscaram os biscoitos, quase levitando.

– Bom, o café, disse Veiga.

– Obrigado, quer mais biscoitos, perguntou Murilo.

E assim se passaram eternos vinte minutos. Mais uma bebericada, outro pigarro, fazia frio aquela época em Belo Horizonte, o tempo.

– Pois é, disse Veiga, muito obrigado por nos receber, disse, levantando.

– Eu que agradeço, replicou Murilo, baixando os olhos e sorrindo, de leve.

Descemos o elevador, calados. Na rua, ele se despediu.

– Vou levá-lo ao Hotel, eu disse.

– Não, Afonso, obrigado. Quero caminhar um pouco.

Nos abraçamos, ele comovido, eu meio confuso. Demorei anos para entender aquele silêncio e as poucas palavras daquela tarde: puro excesso de respeito. Quando a admiração mútua transborda. E eu me lembro de cada um daqueles fantásticos vinte minutos.